“O padre Aldo é o terror da região. Nada se faz no município sem que ele seja consultado. O padre ofende no púlpito o prefeito, a juíza de direito, o delegado de polícia e outras autoridades que se opõem ao seu trabalho”.
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O trecho é de um documento inédito dos órgãos de espionagem da ditadura civil-militar (1964-1985) e faz parte do livro “Diálogo, modernização e conflito – Uma biografia do cardeal Dom Avelar Brandão Vilela”, de Grimaldo Carneiro Zachariadhes, da editora Edufba.
A publicação vai ser lançada em Salvador em maio próximo. O religioso em questão é o italiano Aldo Lucchetta, que integrou à época a paróquia de Riacho de Santana, no Sudoeste baiano, a 715 quilômetros de Salvador.
Foto: Grimaldo Carneiro Zachariadhes
Padre progressista, como muitos que circulavam na Bahia naqueles anos sombrios, Aldo Lucchetta era destemido e não titubeava em enfrentar o poder no interior do estado. Natural da província de Treviso, no Norte da Itália, Lucchetta, com então 26 anos, desembarcou no Brasil pelo interior do Espírito Santo, pela cidade de São Matheus.
Tomou gosto pela pedagogia do oprimido, do educador Paulo Freire, e começou a fazer, no intervalo das missas, o trabalho de base como os trabalhadores rurais. Não demorou, e Aldo passou a incomodar autoridades, que pediram a saída dele do país, em 1972. Um ano depois, porém, o religioso voltava para o Brasil. A parada foi em Caetité, onde começou a deixar marcas na região.
Passou por Licínio de Almeida até chegar em Riacho de Santana onde se fixou a partir de 1975. “A gente tem muita saudade dele. Fez muito por aqui. Era um padre enérgico e muito dinâmico”, disse a radialista Ivanete Cardoso ao Bahia Notícias. Moradora de Tanque Novo, também no Sudoeste, ela lembra que Padre Aldo, como era chamado, atuou em várias frentes, seja na educação, com as sempre lembradas “escolas famílias agrícolas”, no esporte, na saúde e até na comunicação, chegando a fundar diversas rádios.
“Tinha personalidade forte e sempre foi um homem de ação. Não media palavras para denunciar injustiças, muito menos para pregar o evangelho de Cristo. Estava sempre pregando, mas não contasse com ele para encobrir alguma injustiça”, disse Ivanete durante uma homenagem ao padre.
Os embates com o poder local prosseguiam. Em janeiro de 1981, o então prefeito de Riacho de Santana, Alcides Cardoso Coutinho, publicou uma “carta-denúncia” no jornal A Tarde. No relato, o gestor afirmava que o religioso assumia “posições anti-sociais”, que não só perturbavam a administração da cidade, como tumultuavam “a vida religiosa dos paroquianos”. O prefeito apelava para o então cardeal Primaz do Brasil e principal liderança católica do estado, Dom Avela Brandão Vilela.
Foto: Grimaldo Carneiro Zachariadhes
O texto baixava o nível na argumentação e deixava sair até xenofobia. “O que se quer e implora – não é de hoje – é que o povo católico de Riacho de Santana volte a encontrar na Igreja construída pelos seus maiores a paz que há trás anos foi de lá varrida pela incontinência verbal de um boquirroto que nem fala corretamente a nossa língua e a todos insufla no calão mais baixo, num sotaque carregado de quem ainda riais se deu ao trabalho de aprender o idioma do pais que o acolheu pelo amor do Cristo”, dizia o prefeito.
Dois dias depois e no mesmo jornal, uma denúncia apontava a atuação de grileiros no município com o próprio prefeito envolvido no caso. Segundo a acusação, o gestor, acompanhado de policiais, tinha invadido uma propriedade na localidade de Cambaitó.
Foto: Grimaldo Carneiro Zachariadhes
De acordo com Grimaldo Carneiro Zachariadhes, o pedido do prefeito a Dom Avelar revelava o jogo de cintura do arcebispo diante das ações da ditadura. Chamado de “Bispo do Diálogo”, Avelar se sentava com os dois lados e conseguia ser respeitado por ambos. A ditadura também não gostava de se indispor com os religiosos.
“O regime sempre teve um cuidado muito grande com a Igreja Católica. Os setores dentro da Igreja que faziam oposição à ditadura eram vistos com muito cuidado pelo regime, porque a ditadura se preocupava muito com a imagem do Brasil”, diz Zachariadhes. Aldo Lucchetta se livrou da expulsão e continuou as lutas no Sudoeste baiano. Uma questão que ajudou no trabalho de base do pároco é que a Bahia, apesar de sofrer os horrores do período, não foi tão castigada como outros estados, a exemplo de Pernambuco.
Como a igreja ainda tinha crédito com os militares, os espaços religiosos serviam de amparo para os perseguidos e aos que ainda conservavam o espírito libertador, caso de Aldo Lucchetta. “Nas cidades do interior, a atuação da igreja era ainda mais importante porque não havia outros canais de denúncia. A igreja se tornava a única instituição possível”, afirma outra vez Grimaldo Zachariadhes.
A partir daí chegavam aos padres do interior baiano diversas denúncias, sobretudo de violações contra trabalhadores rurais. Apelidado de “Herói do Sertão”, Aldo Lucchetta atuou na criação de mais de 60 escolas na região, muitas delas para preparação de técnicos rurais. Passou pela ditadura, que completa 60 anos no próximo dia 31 de março, e entrou na nova República.
O padre seguia na lida diária quando um acidente de carro interrompeu os então 56 anos de vida de Lucchetta em 1998. O fato ocorreu há exatos 26 anos completados nesta quinta-feira (28).
(Fonte Bahia Notícias)