Blog do Alécio Brandão

O Mestre do Arado: Prof. Ático recebe homenagem no Diário da Manhã, Goiânia.

Nunca Mais... Morrerás em nossas memórias!...
Nunca Mais… Morrerás em nossas memórias!…

Ecoa pelo Brasil e Mundo a passagem do Prof. Ático Mota, Lena Castello Branco, amiga e jornalista de Goiânia, capital do Estado de Goiás, onde o Prof. Ático morou por diversas décadas e foi um dos co-fundadores da Universidade Federal daquele estado, aprecie a  Crônica publicada no Diário da Manhã, Goiânia, 29/03/2016. por Lena Castello Branco:

 NUNCA MAIS

Lena Castello Branco
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É domingo de Páscoa e toca o telefone: um amigo comunica o falecimento do Professor Ático Frota Vilas Boas da Mota, ocorrida ontem, 26 de março de 2016. A notícia toca-me fundo o coração: fomos amigos por mais de 50 anos, às vezes passávamos meses sem falar um com o outro, mas a afeição recíproca persistia a despeito dos percalços da vida.
Gostava de ouvir ao telefone o (amenizado) sotaque baiano do amigo que me saudava: “Como vai, minha irmã Lena?”. Porque eu costumava dizer que ele era meu irmão mais velho, e Ático aceitou tal fraternidade, expressão de identidade e de carinho. E, de minha parte, de incondicional admiração pelo homem íntegro e bom que ele sempre foi, sobressaindo pela inteligência privilegiada, memória invulgar, amor aos livros e erudição fantástica. A par de uma autenticidade única, que fazia dele um daqueles tipos inesquecíveis de que se falava outrora, pessoas que deixam sua marca na lembrança de quem conviveu com eles.
Conheci Ático no início da década de 1960, quando ele chegou a Goiânia e trabalhava na Universidade Federal de Goiás, recentemente fundada. Vi-o à distância, na Reitoria da Rua 20, como um torvelinho à frente do Departamento de Cultura, cuidando de organizar a I Feira Internacional do Livro (acho que o nome era esse). Segundo me informaram, ele participara da missão João Dantas do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), com vistas ao intercâmbio cultural com países do Leste Europeu.
Poliglota, versátil e articulado, Ático era então – como sempre foi – uma usina de ideias, interessado em disseminar cultura, voltado para a beleza da arte literária e das línguas modernas, sete das quais dominava com a naturalidade de quem recita um poema aprendido na infância. Isso sem falar na paixão pelos ciganos, sua história, seus mitos, sua música, suas belezas e segredos que ele estudava e desvelava como pesquisador emérito que foi.
Certa tarde do ano de 1964 – era o mês de setembro – soou a campainha de minha casa. Era Ático, com a fisionomia marcada por olheiras, mas sorridente. Recebi-o com curiosidade – pois sabia (todos sabiam) que ele estava (ou estivera?) preso no Quartel do 10º. BC, respondendo inquérito polical-militar como subversivo.
Ele disse que fora solto há pouco, e que viera do Quartel para minha casa pois queria abraçar-me. Dito e feito: abraçamo-nos por longo tempo, próximos um do outro no sentimento de injustiça que nos irmanava, pois que eu também estivera detida e fora interrogada pelo mesmo coronel que arguira e atazanara Ático, durante semanas. Perguntei-lhe se queria desabafar, contar seus sofrimentos ou maus tratos. “Não – ele respondeu – Não vamos falar disso, é página virada”. E acrescentou; “Vim diretamente até você porque ouvi o seu interrogatório e suas respostas. Você foi digna e serena.” E novamente me abraçou.
Ático tornou-se professor do antigo Instituto de Ciências Humanas e Letras da UFG, onde exercitou sua paixão de humanista pelas letras e pela literatura, com destaque para o clássico dos clássicos, “Dom Quixote de la Mancha”. Quando adquiriu um terreno no então pouco habitado Setor Sul, sugeriu a um vereador que fizesse aprovar, na Câmara Municipal, o nome de Miguel de Cervantes para denominar a praça em frente. Consta que a primeira reação do edil foi de estranheza: por que um cara que nada fez por Goiás mereceria ser homenageado? Mas parece que, afinal, a sugestão pegou…
Muito cedo, Ático chegava ao Instituto vestindo guarda-pó branco e trazendo uma caixinha de madeira, com giz e apagador. Nunca me esqueço do dia em que – a convite de um colega – um pomposo mestre paulistano iria ministrar uma palestra para os cursos de Letras. Como diretora do ICHL, fui fazer uma visita de cortesia ao convidado; mas, ao invés de uma serena exposição em desenvolvimento, encontrei no anfiteatro o professor Ático demolindo, com lógica irrefutável, a exposição arrevesada do filósofo de araque que não conseguia sequer contra-argumentar…
São tantas as lembranças! Ático no Teatro de Varanda, em sua casa; pintando e escrevendo poemas; dançando a dança do Zorba como quem fez uma oração; conversando com meus filhos; fazendo-me uma solene visita de pêsames; prefaciando um dos meus livros. Reconhecido internacionalmente, ele recebeu láureas e prêmios no Brasil e no exterior. Mas a vida passa rápida e implacável – com a suprema implacabilidade da morte, que nos faz sobreviventes, àqueles a quem as Parcas ainda hesitam em cortar o fio da vida.
Ele voltou para a terra de sua infância, empenhou-se em beneficiar a juventude de Macaúbas, criou a Fundação Professor Augusto Motta (seu pai), à qual se dedicou de corpo e alma. Tantas vezes desejei ir visitá-lo, sem que me fosse possível fazê-lo. De longe em longe, ele vinha a Goiânia e era muito bom revê-lo, à sua figura despojada, a cabeça de formato incomum, os cabelos brancos, a inteligência rara e a sensibilidade à flor da pele.
Nunca mais. Nunca mais ouvi-lo ao telefone, sua voz entre risonha e carinhosa. E os minutos se passavam, dando e recebendo notícias, comentando fatos, redescobrindo afinidades, rindo pelo prazer da amizade e do querer bem.
Nunca mais!
Fica com Deus, Ático, meu irmão.

 

 


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